Saudações palmeirenses e bicolores às pessoas que me dão a honra da visita a este humilde blog. Hoje posto uma matéria escrita por Marcelo Abreu, na edição de 19/02/09, do jornal Correio Braziliense, aqui do Distrito Federal. Ele escreveu sobre Mira Alves, poeta e pintora, além de minha amiga; clicada pelas lentes do fotógrafo Ronaldo de Oliveira. Vale lembrar que, indiretamente, há citação a meu respeito no texto. A quem vocês pensam que o repórter se refere quando afirma que " um bom amigo digita pra ela" ?
Mira é uma artista que traz no seu trabalho a herança dos poetas alternativos da década de '70, lá do século XX. Gente como Chacal, Cacaso, Geraldinho Carneiro, Ana Cristina César, Nicolas Behr, entre outros. Seu estilo é lúdico, que nos diverte, apaixona e faz sorrir.
Segue o texto de Abreu. Num outro post, vocês lerão alguns dos belos poemas escritos por Mira Alves.
Figura conhecida das noites de Brasília, ela já escreveu 20 livros e tem outros cinco inéditos, todos feitos à mão. Em seus poemas, fala de amor, solidão, esperança e vida. Há duas décadas, vende sonho pela cidade
Marcelo Abreu
Da equipe do Correio
Você certamente já a viu. Se vai a bares e restaurantes, com frequência ou não, já esbarrou com ela. Se vai ou foi ao velho e bom Beirute — a melhor subversão de Brasília e, por isso, sua mais maluca tradução —, já cruzou com aquela mulher de brincos e colares grandes. Ah, se já... Se já foi ao Libanus, idem. Ao Feitiço Mineiro. Ao Café Martinica. Ao Balaio. Ao Café da Rua 8... Melhor parar por aqui. É tanto bar, restaurante e café que essa listinha não teria mais fim. Com certeza, aquela estranha foi à sua mesa. Mas muito provavelmente você não sabe — e talvez nunca quis saber — seu nome.
Alguns, entretanto, até sabem. Conversam com ela. E a convidam para se sentar. Há uns que a deixam falar, fazem perguntas, folheiam o que ela carrega. Mostram interesse. Argumentam. Elogiam. Outros, porém, trocam meia dúzia de palavras, não folheiam o que aquela mulher carrega. E ela parte. É preciso ir. A caminhada é longa, cansativa, extenuante. Tem sido assim há 23 anos. Esse é o seu ofício.
Aquela mulher de estatura mediana, cabelos ondulados, olhar ao mesmo tempo de curiosidade e certo espanto, talvez uma timidez que mal consegue disfarçar, atende pelo nome de Valmira Alves. Valmira o quê? Deixa pra lá. Ela se apresenta apenas como Mira Alves. É artista — escreve poesias e pinta telas abstratas e paisagem. É pela sua obra que ela caminha de bar em bar, tentando vendê-las. Há 23 anos, Mira vive a noite e sua madrugada. Na penumbra da cidade, nos bares lotados, na solidão que dilacera os andarilhos, no desamparo dos bêbados, na esperança dos que batalham, lá está Mira. É igualmente personagem. Mais um na vida anônima dos milhares de anônimos de Brasília.
Mas eis que, a certa hora, depois de andar as Asas Sul e Norte, pulando de um ônibus para o outro, ou mesmo a pé, ela desaparece. Ninguém dos bares consegue dizer para onde foi. Ninguém sabe, além do que escreve nas suas poesias, mais nada sobre ela. É como um mistério. Durante o dia, ninguém a vê. Onde aquela mulher mora? Onde vive? O que pensa? Quais são seus planos? Medos? Por que escreve? O que a leva a pintar? Quem é Mira, afinal?
Depois de algumas conversas, Mira aceitou falar ao Correio. E nos permitiu chegar até onde mora, um apartamento humilde na 709 Norte, com janelas para a W3, o qual divide com mais sete outras pessoas. É uma espécie de república, gente tão anônima quanto ela. É ali, desde setembro, que Mira procurou abrigo, depois de deixar Luziânia (GO), cidade onde nasceu.
Aprendizado em casa
Tarde de ontem, 16h, Mira nos espera no lugar combinado. Há uma escada íngreme que se vence até chegar ao seu apartamento. Lá está a poeta da noite. Sorriso bom, olhar ainda desconfiado. Sobre a pequena mesa da saleta, livros (feitos em papel A4), cadernos cheios de poesias e telas. Aos poucos, os segredos daquela mulher de 49 anos, sem filhos e solteira (“por opção, mas sou muito namoradeira”, brinca) vão se dissipando. Mira é simples. Fala baixo e os olhos encaram o interlocutor com delicadeza. O sorriso é contido. Filha de um agricultor e de uma dona-de-casa, foi criada na roça. Carrega uma timidez que ela mesma tenta vencer. “Só aos 13 anos, com a separação dos meus pais, fui para a cidade com minha mãe”, conta. Aos 14, ela deixou a distante Luziânia para morar em Brasília, na casa de uma irmã mais velha. Parou na Asa Sul.
Aqui, estudou. Terminou o ensino fundamental e o médio. E formou-se em Teologia. Sim, em Teologia, não está escrito errado, não. Em tempo: a escritora se confessa católica praticante de “ir à missa todo domingo”, faça chuva ou sol. Mas a poesia sempre lhe tocou mais profundamente. “Meu pai, lá na roça, fazia versos de improvisos e tocava viola de moda. Cresci assim”, ela diz. Ainda menina, apaixonou-se por Casimiro de Abreu. “O poema Meus oito anos me marcou profundamente”, fala. Na adolescência, passou a admirar Clarice Lispector, Mario Quintana e Adélia Prado. E começou a trabalhar, para se sustentar. Vendeu muito produto de beleza de porta em porta. Ou seja, andar sempre foi a sina de Mira.
Em 1986, a artista retornou a Luziânia. Junto com escritores locais, fundou o Grupo Asas. Lançaram um jornalzinho alternativo na cidade, todo voltado à publicação de poesias. Mira passou a vender o jornal pelos bares do Plano Piloto. “O Beirute foi o primeiro que me deixou entrar e vender”, diz. A experiência foi tão agradável que, em 1987, ela lançou seu primeiro livro de poesias: Calliandra, a flor do cerrado, com 1,5 mil exemplares, todo bancado com suas poucas e suadas economias de andarilha e ajuda de uma boa irmã. “Em um ano, de bar em bar, a edição se esgotou. Vendi tudo”, vibra, como menina que acaba de ganhar a boneca preferida.
Sentimentos
Mira nunca mais parou. De lá pra cá, passaram-se 23 anos. São 20 livros (em papel A4) e mais cinco ainda inéditos. Sem computador, ela escreve à mão. Depois, um bom amigo digita pra ela. E a obra fica pronta. “Quando escrevo, tô explicando o mundo pra mim mesma. É uma libertação”, constata. E confessa, comovida: “A palavra muda, consola, alimenta, liberta e salva. A mim me salvou. E a poesia é minha opção pra viver”.
Há dez anos, ela resolveu ressuscitar seu talento de pintora. “Pinto óleo sobre tela e acrílico. É uma pintura abstrata e gosto de paisagem. Tudo que lembra minha infância na roça: flores, cavalos e pássaros”, explica. E assim, com livros e telas, de ônibus ou a pé, ela ganha a noite. Mistura-se a uma gente tão anônima quanto ela. Vai vender poesia. Se é bom ou ruim, cabe ao leitor opinar. Mira fala dela, de sentimentos muito particulares, de amores e sonhos. Fala, em essência, de vida. “Aos 20 anos, eu achava que a melhor defesa era o ataque. Fazia isso porque sentia medo do mundo. Hoje, não tenho mais medos. Não preciso mais me defender”, filosofa. “O que me entristece? O preconceito, de todas as formas, e a injustiça no mundo.”
Esta é Mira, que aparece do nada e vai embora com a mesma intensidade. Da próxima vez que você a vir em alguma quebrada dessas, permita-a que se aproxime. Decididamente, ela não morde. Folheie o que a poeta andarilha carrega. Ela só quer falar, mesmo que não diga uma só palavra oral, de poesia. É disso que vive. É dessa forma que encarou a vida, seus mistérios e a escuridão pária da noite.
Mira é uma artista que traz no seu trabalho a herança dos poetas alternativos da década de '70, lá do século XX. Gente como Chacal, Cacaso, Geraldinho Carneiro, Ana Cristina César, Nicolas Behr, entre outros. Seu estilo é lúdico, que nos diverte, apaixona e faz sorrir.
Segue o texto de Abreu. Num outro post, vocês lerão alguns dos belos poemas escritos por Mira Alves.
Aroldo José Marinho
Figura conhecida das noites de Brasília, ela já escreveu 20 livros e tem outros cinco inéditos, todos feitos à mão. Em seus poemas, fala de amor, solidão, esperança e vida. Há duas décadas, vende sonho pela cidade
Marcelo Abreu
Da equipe do Correio
Você certamente já a viu. Se vai a bares e restaurantes, com frequência ou não, já esbarrou com ela. Se vai ou foi ao velho e bom Beirute — a melhor subversão de Brasília e, por isso, sua mais maluca tradução —, já cruzou com aquela mulher de brincos e colares grandes. Ah, se já... Se já foi ao Libanus, idem. Ao Feitiço Mineiro. Ao Café Martinica. Ao Balaio. Ao Café da Rua 8... Melhor parar por aqui. É tanto bar, restaurante e café que essa listinha não teria mais fim. Com certeza, aquela estranha foi à sua mesa. Mas muito provavelmente você não sabe — e talvez nunca quis saber — seu nome.
Alguns, entretanto, até sabem. Conversam com ela. E a convidam para se sentar. Há uns que a deixam falar, fazem perguntas, folheiam o que ela carrega. Mostram interesse. Argumentam. Elogiam. Outros, porém, trocam meia dúzia de palavras, não folheiam o que aquela mulher carrega. E ela parte. É preciso ir. A caminhada é longa, cansativa, extenuante. Tem sido assim há 23 anos. Esse é o seu ofício.
Aquela mulher de estatura mediana, cabelos ondulados, olhar ao mesmo tempo de curiosidade e certo espanto, talvez uma timidez que mal consegue disfarçar, atende pelo nome de Valmira Alves. Valmira o quê? Deixa pra lá. Ela se apresenta apenas como Mira Alves. É artista — escreve poesias e pinta telas abstratas e paisagem. É pela sua obra que ela caminha de bar em bar, tentando vendê-las. Há 23 anos, Mira vive a noite e sua madrugada. Na penumbra da cidade, nos bares lotados, na solidão que dilacera os andarilhos, no desamparo dos bêbados, na esperança dos que batalham, lá está Mira. É igualmente personagem. Mais um na vida anônima dos milhares de anônimos de Brasília.
Mas eis que, a certa hora, depois de andar as Asas Sul e Norte, pulando de um ônibus para o outro, ou mesmo a pé, ela desaparece. Ninguém dos bares consegue dizer para onde foi. Ninguém sabe, além do que escreve nas suas poesias, mais nada sobre ela. É como um mistério. Durante o dia, ninguém a vê. Onde aquela mulher mora? Onde vive? O que pensa? Quais são seus planos? Medos? Por que escreve? O que a leva a pintar? Quem é Mira, afinal?
Depois de algumas conversas, Mira aceitou falar ao Correio. E nos permitiu chegar até onde mora, um apartamento humilde na 709 Norte, com janelas para a W3, o qual divide com mais sete outras pessoas. É uma espécie de república, gente tão anônima quanto ela. É ali, desde setembro, que Mira procurou abrigo, depois de deixar Luziânia (GO), cidade onde nasceu.
Aprendizado em casa
Tarde de ontem, 16h, Mira nos espera no lugar combinado. Há uma escada íngreme que se vence até chegar ao seu apartamento. Lá está a poeta da noite. Sorriso bom, olhar ainda desconfiado. Sobre a pequena mesa da saleta, livros (feitos em papel A4), cadernos cheios de poesias e telas. Aos poucos, os segredos daquela mulher de 49 anos, sem filhos e solteira (“por opção, mas sou muito namoradeira”, brinca) vão se dissipando. Mira é simples. Fala baixo e os olhos encaram o interlocutor com delicadeza. O sorriso é contido. Filha de um agricultor e de uma dona-de-casa, foi criada na roça. Carrega uma timidez que ela mesma tenta vencer. “Só aos 13 anos, com a separação dos meus pais, fui para a cidade com minha mãe”, conta. Aos 14, ela deixou a distante Luziânia para morar em Brasília, na casa de uma irmã mais velha. Parou na Asa Sul.
Aqui, estudou. Terminou o ensino fundamental e o médio. E formou-se em Teologia. Sim, em Teologia, não está escrito errado, não. Em tempo: a escritora se confessa católica praticante de “ir à missa todo domingo”, faça chuva ou sol. Mas a poesia sempre lhe tocou mais profundamente. “Meu pai, lá na roça, fazia versos de improvisos e tocava viola de moda. Cresci assim”, ela diz. Ainda menina, apaixonou-se por Casimiro de Abreu. “O poema Meus oito anos me marcou profundamente”, fala. Na adolescência, passou a admirar Clarice Lispector, Mario Quintana e Adélia Prado. E começou a trabalhar, para se sustentar. Vendeu muito produto de beleza de porta em porta. Ou seja, andar sempre foi a sina de Mira.
Em 1986, a artista retornou a Luziânia. Junto com escritores locais, fundou o Grupo Asas. Lançaram um jornalzinho alternativo na cidade, todo voltado à publicação de poesias. Mira passou a vender o jornal pelos bares do Plano Piloto. “O Beirute foi o primeiro que me deixou entrar e vender”, diz. A experiência foi tão agradável que, em 1987, ela lançou seu primeiro livro de poesias: Calliandra, a flor do cerrado, com 1,5 mil exemplares, todo bancado com suas poucas e suadas economias de andarilha e ajuda de uma boa irmã. “Em um ano, de bar em bar, a edição se esgotou. Vendi tudo”, vibra, como menina que acaba de ganhar a boneca preferida.
Sentimentos
Mira nunca mais parou. De lá pra cá, passaram-se 23 anos. São 20 livros (em papel A4) e mais cinco ainda inéditos. Sem computador, ela escreve à mão. Depois, um bom amigo digita pra ela. E a obra fica pronta. “Quando escrevo, tô explicando o mundo pra mim mesma. É uma libertação”, constata. E confessa, comovida: “A palavra muda, consola, alimenta, liberta e salva. A mim me salvou. E a poesia é minha opção pra viver”.
Há dez anos, ela resolveu ressuscitar seu talento de pintora. “Pinto óleo sobre tela e acrílico. É uma pintura abstrata e gosto de paisagem. Tudo que lembra minha infância na roça: flores, cavalos e pássaros”, explica. E assim, com livros e telas, de ônibus ou a pé, ela ganha a noite. Mistura-se a uma gente tão anônima quanto ela. Vai vender poesia. Se é bom ou ruim, cabe ao leitor opinar. Mira fala dela, de sentimentos muito particulares, de amores e sonhos. Fala, em essência, de vida. “Aos 20 anos, eu achava que a melhor defesa era o ataque. Fazia isso porque sentia medo do mundo. Hoje, não tenho mais medos. Não preciso mais me defender”, filosofa. “O que me entristece? O preconceito, de todas as formas, e a injustiça no mundo.”
Esta é Mira, que aparece do nada e vai embora com a mesma intensidade. Da próxima vez que você a vir em alguma quebrada dessas, permita-a que se aproxime. Decididamente, ela não morde. Folheie o que a poeta andarilha carrega. Ela só quer falar, mesmo que não diga uma só palavra oral, de poesia. É disso que vive. É dessa forma que encarou a vida, seus mistérios e a escuridão pária da noite.
Um comentário:
Meu primeiro encontro com Mira foi no Girafas da 106 Sul há quase 30 anos atrás, ao longo desse tempo, fomos nos esbarrando nos bares da vida... Me apaixonei por seus poemas... e alguns deles faço sempre "uso"... encanto de pessoa...
"Neste risco existe um medo explícito, às vezes corrro de medo, às vezes corro o risco"
...lindo...
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