A vida de professor universitário tem seus momento de picos. Um deles, é o que estou vivendo. Corrigir trabalhos e provas. Preparar provas de segunda chamada para alguns faltosos. Lançar notas, definir quem serão os alunos da recuperação e o que mais ocorrer. Desnecessário explicar que, por isso, o tempo para fazer outras coisas, como a atualização diária do blog, ficam prejudicadas.
O que fazer para que os leitores e as leitoras não percam a simpatia por este espaço? O jeito é pegar alguma postagem emprestada. Então fui à caça. Graças a Deus consegui logo na primeira tentativa. No blog de Ricardo Kotscho encontrei este texto. Gostaria de tê-lo escrito. Espero que vocês também gostem.
Bom final de semana!
 
Harold
REFLEXÕES SOBRE A GULA
RETIRINHO/Dezembro de 2010
Ricardo Kotscho
Certa vez, uns trinta anos atrás, fiz uma reportagem para o Estadão  sobre as mais variadas causas de câncer. Entrevistei médicos,  pesquisadores e pacientes, para chegar à conclusão de que praticamente  tudo causava câncer. O título só poderia ser mais ou menos este:  “Cuidado! Viver dá câncer”.
Desde pequeno, a gente costuma ouvir aquela filosofia segundo a qual  “o que não mata engorda”. Ou seja, você pode escolher entre ser obeso ou  morrer, embora os médicos e os religiosos nos digam que a obesidade  mata.
Uma rápida pesquisa no Dr. Google nos mostra que o que era um  problema de saúde para os antigos gregos _ a depressão, por exemplo _  foi transformado em pecado pelos grandes pensadores da Igreja Católica.
Assim como acontece com as causas do câncer, se nós formos levar a  ferro e fogo o que está escrito nos textos bíblicos e nas suas  interpretações posteriores, vamos ver que tudo o que é bom e dá prazer  ameaça a nossa saúde, abala o espírito, é pecado e pode matar. Por isso,  devemos viver em permanente sacrifício, como nos ensinam os  especialistas do pecado da Gula.
Dos antigos aos mais recentes textos sobre o assunto, as ameaças são assustadoras.
Em Provérbios 23:20-21 somos advertidos: “Não estejas entre os  bebedores de vinho nem entre os comilões de carne. Porque o beberrão e o  comilão caem em pobreza; e a sonolência vestirá de trapos o homem”.
Mais adiante, Provérbios 23:2 proclama solenemente: “Mete uma faca à tua garganta, se és homem glutão”.
Com palavras mais amenas, mas no mesmo sentido, o professor Felipe  Aquino, uma das estrelas carismáticas da moda que se apresentam na TV  Canção Nova, escreveu em março do ano passado:
“Não é possível querer levar uma vida pura sem sacrifício. O corpo  foi nos dado para servir e não para gozar; o prazer egoísta passa e  deixa gosto de morte”.
De onde ele tirou isso? Sei lá. Só sei que não sou candidato a santo  nem hipócrita e não concordo que a vida tenha que ser um permanente  sacrifício. Ao contrário, gostaria que ela fosse sempre uma festa, uma  celebração, um grande prazer, uma permanente alegria por estar vivo.
Claro que para tudo há limites, e o melhor conselheiro nestes casos é  o bom senso _ e não o medo, a ameaça, o castigo e a morte acenando a  cada esquina, que é o que se depreende destes textos.
Não por acaso, certamente, coube a mim o tema da Gula neste encontro  e, como vocês sabem, posso falar por experiência própria. Sou de uma  família em que todo mundo gosta de comer e de fazer comida. Da minha  infância, lembro-me da família reunida em torno da mesa em longos  almoços e jantares, as pessoas falando alto, rindo, comendo e bebendo.
Mesmo assim, eu era um sujeito magro, quase esquelético, e assim me  mantive até perto dos 40 anos, quando arrebentei o joelho, depois de já  ter quebrado o pé e várias costelas, e parei de jogar futebol. Não  passei a comer e beber nem mais nem menos, mas aos poucos fui ficando  mais robusto. Quem olha pra mim hoje, a julgar pelo que nos ensinam os  pensadores católicos e os médicos fundamentalistas, vai achar que sou um  baita pecador de alto risco, glutão e beberrão, um sujeito que foi  dominado pelo vício e não faz mais nada na vida.
Não é bem assim. Trabalho cada vez mais, me meto num monte de  compromissos remunerados ou não, cumpro todos, ajudo os outros, mas no  fim do serviço, ao cair da tarde, quero ter o direito de ir para o bar  encontrar os amigos.
Ou nós viemos ao mundo só a trabalho, só para sofrer e pagar os pecados? Sou gordo, mas sou feliz…
Já me proibiram de fumar, depois de exatos 50 anos tendo o cigarro  por inseparável companheiro na hora de escrever, o que está sendo bem  difícil. Até agora, o único efeito foi ganhar mais alguns quilos. Se me  proibirem também de beber e comer o que gosto, que diabos, de que  adianta ficar velho antes de morrer?
Por falar em diabo, criaram até um demônio próprio para a Gula. Em  1589, sim, 1589 _ e às vezes penso que a nossa Igreja ainda vive naquela  época _ Peter Binsfeld comparou cada um dos pecados capitais com seus  respectivos demônios, seguindo os significados mais usados. De acordo  com Binsfeld´s Classification of Demons, a Gula é representada pelo Belzebu. Que medo!
Tem remédio para isso, além de fechar a boca e jejuar para o resto da  vida deitado numa cama de pregos? Claro, pesquisando bem, para tudo tem  remédio. Neste caso, para o pecado capital da Gula recomenda-se a velha  e boa Temperança, uma das quatro virtudes cardinais (nunca tinha ouvido  falar nisso…).
De acordo com as melhores doutrinas da Igreja Católica, temperança  significa equilibrar, colocar sob limites, “moderar a atracção dos  prazeres, assegurar o domínio da vontade sobre os instintos e  proporcionar o equilíbrio no uso dos bens criados” (CCIC, nº. 383).
Escrevendo aos filipenses, São Paulo se refere àqueles cujo “deus é o  ventre” (cf. Fil. 3,19), isto é, o alimento. “Se a Igreja nos aponta a  gula como um vício capital é porque ela gera outros males: preguiça,  comodismo, paixões, doenças, etc…”.
O perigo, certamente, está neste “etc…”. O que será?